Os cheiros estimulam nossos sentidos e nos remetem à lembranças afetivas. Muitos nos transportam a tempos distantes e nos levam para junto de pessoas queridas, fazendo com que o passado ganhe sentido de presente. As comemorações de Páscoa de minha infância, em especial da Sexta-Feira da Paixão tinham cheiro de bacalhau. Nunca tiveram cheiro de chocolate. Confesso que não devoto paixão a esta iguaria tão apreciada. Prefiro doce seco de batata doce ou abóbora, até doce de laranja azeda. O almoço da sexta-feira era preparado pelo meu pai - bacalhau do Bonifa! Nome carinhoso que dei ao bacalhau preparado com os segredos culinários do Bonifácio. As grossas postas brancas de bacalhau tipo Porto (a Mercearia Bonifácio só vendia produtos de primeira) ficavam de molho em água de um dia para o outro, trocada várias vezes, talvez quatro ou cinco vezes.
Depois deste ritual, as postas recebiam uma leve fervura. Esta água era reservada para o cozimento das batatas inglesas inteiras, que deveriam ficar firmes. O sal era dispensado porque ganhavam o sabor e o tempero do bacalhau. As postas eram passadas ligeiramente na farinha de trigo para, posteriormente serem fritas por imersão, em excelente e genuíno azeite de oliva espanhol. Segundo o meu pai, bastava ser espanhol para ser bom. A fritura rápida, o quanto dourava a farinha, tinha como objetivo manter as postas firmes para evitar que se quebrassem durante a montagem do prato e, de lucro, acrescentava o indispensável sabor do azeite de oliva.
Fecho os olhos e o cheiro de óleo quente combinado ao do bacalhau me levam ao convívio de pessoas cujas lembranças, hoje, são revestidas de saudade, gratidão e amor. As cebolas, os tomates e os pimentões verdes e vermelhos, em quantidade generosa, eram cortados em rodelas grossas por minha mãe. Em uma panela sobre o azeite de oliva quente, a cebola era frita. Em seguida, os tomates e por último, os pimentões, sem deixar amolecer. Em uma assadeira funda, as postas de bacalhau eram distribuídas. Logo em seguida, por entre elas, arrumavam-se as batatas. Cuidadosamente arrumados, era a vez de serem cobertos pelo refogado. Azeitonas pretas gregas, enormes e carnudas davam um toque mediterrâneo, intensificando o contraste de cores e sabores que iam tomando conta do prato.
Antes de ir ao forno, o indispensável reforço de azeite de oliva sem economia. Ali ficava por uns 20 a 30 minutos, exalando o perfume da Sexta-Feira Santa da minha infância. Ovos cozidos cortados em metades e o salpico de salsa davam o toque final na hora de servir. O prato era único, dispensava acompanhamento. O ritual e o bacalhau do Bonifa se completavam com o toque da pimenta e do vinho branco, naturalmente espanhol.
Recordar a receita do bacalhau do meu pai é rememorar lembranças que perfumaram e mantêm palatáveis a infância distante e a Páscoa com sentido de renascimento celebrada em família.